Os objetos são diferentes, mas o seu sentido é o mesmo: o desejo de
aconchego e de ternura, por isso eu acho que o senhor e a senhora fizeram muito
bem ao dar uma boneca de presente para a sua filhinha.
Com uma exceção, é claro: se a boneca não foi a Barbie. Porque a Barbie
não é uma boneca. Falta a ela o poder que têm as outras bonecas, bebezinhos, de
afugentar o medo e provocar sentimento maternais de ternura. Não posso imaginar
uma menina dormindo abraçada à sua Barbie. Nenhum pai colocaria a Barbie no
túmulo da filha morta.
A Barbie não é boneca. É uma bruxa.
Posso bem imaginar o espanto nos seus olhos. Eu imagino também os seus
pensamentos: O Rubem perdeu o juízo. A Barbie é unta boneca de plástico, não
mexe, não pensa, não fala.
E agora ele diz que ela é uma bruxa...
Que as bonecas, ao contrário das aparências, têm uma vida própria, eu
aprendi no 2° ano primário. Minha professora me deu um livro sobre bonecas e
bonecos: enquanto a gente estava acordado, elas ficavam deitadinhas, olhinhos
fechados, fingindo que dormiam. Mas bastava que os vivos dormissem para que
elas acordassem e se pusessem a falar coisas.
As bonecas foram os primeiros brinquedos inventados pelos homens.
E foram também os primeiros instrumentos de magia negra. Um alfinete,
aplicado no lugar certo de uma boneca – assim afirmam os entendidos – tem o
poder de matar a pessoa que se parece com ela.
Pois eu digo que a Barbie é uma bruxa. Bruxa enfeitiça. Enfeitiçada, a pessoa
deixa de ter pensamentos próprios. Só pensa o que a bruxa manda. A pessoa
enfeitiçada fica possuída pelos pensamentos da feiticeira e só pensa e faz
aquilo que ela manda.
Se falo é porque vi, com esses olhos que a terra há de comer. Basta que
as crianças comecem a brincar com a Barbie, para que fiquem diferentes. O pai
manda, a mãe manda, a criança faz birra e não obedece. Não é assim com a
Barbie. Basta que a Barbie mande para que elas obedeçam.
De novo você vai me contestar, dizendo que a Barbie não fala e não tem
vontade. Por isso não pode nem dar ordens e nem ser obedecida.
Errado. O fantástico é que ela, sem falar e sem ter vontade, tenha mais
poder sobre a alma da criança que os pais. Quem me revelou isso foi o
futurólogo Alvin Toffler, no seu livro O Choque do Futuro, que li em
1971. O capítulo “A Sociedade do Joga-Fora” começa com a Barbie. Nascida em
1959, em 1970 mais de 12 milhões já tinham sido vendidas. Um negócio da China.
E por quê? Porque a Barbie, diferente das bonecas antigas, bebês que se
contentam com uma chupeta e um chocalho, tem uma voracidade insaciável. A
Barbie é uma boneca que nunca está contente: ela sempre pede mais. E essa é a
grande lição que ela ensina às crianças:
Compra, por favor!
Para se comprar há as roupas da Barbie, a banheira da Barbie, o secador
de cabelo, o jogo de beleza, o guarda-roupa, a cama, a cozinha, o jogo de sala
de estar, o carro, o jipe, a piscina, o chalé de praia, o cavalo e os maridos,
que podem ser escolhidos e alternados entre o loiro e o moreno etc. etc. A
Barbie está sempre incompleta. Portanto, com ela vem sempre uma pitada de
infelicidade. Aliás, essa é a regra fundamental da sociedade consumista: é
preciso que as pessoas se sintam infelizes com o que têm, para que trabalhem e
comprem o que não têm. A Barbie tem esse poder: quem a tem está sempre infeliz
porque há sempre algo que não se tem, ainda. E os engenheiros da inveja, a
serviço das fábricas, se encarregam de estar sempre produzindo esse novo objeto
que ainda não foi comprado. Mas é inútil comprar. Porque logoum outro será produzido. É a cenoura na frente do burro... Ela nunca
será comida.
Quem dá uma Barbie para uma criança põe a criança numa arapuca sem
saída. Porque, ao ter uma Barbie, ela ingressa no Clube das Meninas que têm
Barbie. E as conversas, nesse clube, são assim: Eu tenho o chalé de
praia da Barbie. Você não tem. Ao que a outra retruca:
Não tenho o chalé, mas tenho o marido loiro da
Barbie, que você não tem.
Essa é a primeira lição que a inofensiva boneca de plástico ensina.
Ensina a horrível fala do eu tenho, você não ten. A maldição das comparações. A
maldição da inveja. Você deve conhecer alguns adultos que fazem esse jogo.
Haverá coisa mais chata, mais burra, mais mesquinha? Ao dar uma Barbie de
presente é preciso que você saiba que a menina inevitavelmente aprenderá essa
fala.
Isso feito, uma segunda fala entra inevitavelmente em cena, impulsionada
pelas ilusões da inveja. A menininha pensa: Estou infeliz porque não tenho.
Se eu tiver, serei feliz. O jeito de se ter é comprar.
– Papai...
– Que é, minha filha?
– Compra o chalé de praia da Barbie? Eu quero tanto...
Filha na arapuca. Pai na arapuca.
Mas há uma saída. E, para ela, procuro sócios. Vamos começar a produzir
o próximo e definitivo complemento para a bruxa de plástico: urnas funerárias
para a Barbie. Por vezes o feitiço só se quebra com o assassinato da feiticeira
– por bonitinha que ela seja...
10/1/94.
Fonte: Livro TEOLOGIA DO COTIDIANO – Rubem Alves – páginas 12 e 13- Editora
Olha D´agua 1994.