Como
sempre
Escrito
por Olavo de Carvalho | 09 Outubro 2012
Esquecer a dimensão estratégica
desses crimes, usando as culpas individuais como cortina de fumaça para
encobrir o plano global que os gerou, não é de maneira alguma fazer justiça: é
inocentar o grande culpado, punindo em vez dele os seus colaboradores.
Vivendo num país onde, malgrado a
corrupção nas altas esferas, o empenho diário de evitar o mal e fazer a coisa
certa ainda é uma realidade vivente no seio de tantas famílias e uma referência
incontornável até mesmo para a mídia mais mentirosa e vendida, a degradação dos
padrões de julgamento moral no Brasil surge aos meus olhos com uma clareza
estonteante.
Notem bem: eu não disse padrões de
conduta, disse padrões de julgamento. A prática do crime aí tornou-se tão
normal e corriqueira que ela própria determina os critérios com que será
julgada, nivelando tudo por baixo.
O bem, o heroísmo e a santidade desapareceram do repertório das possibilidades
humanas, até mesmo imaginárias, de tal modo que as virtudes mais banais e
obrigatórias se tornaram a medida máxima de aferição das ações, e o simples
fato de um funcionário cumprir o regulamento basta para elevá-lo ao céu dos
modelos divinos.
No
julgamento do Mensalão, todo mundo esperava que os juízes agissem da maneira
usual, isto é, se deixassem vender. Como não fizeram isso, como não fizeram
vista grossa àquilo que até um cego podia enxergar com nitidez cristalina,
foram instantaneamente transfigurados nas encarnações mais sublimes das
virtudes pátrias, recebendo louvores que nunca foram concedidos a José
Bonifácio de Andrada e Silva, ao Duque de Caxias ou ao Beato José de Anchieta.
Não vai nisso, é claro, qualquer
crítica ou tentativa de depreciar o desempenho de Suas Excelências. Quem está
julgando errado não são os juízes, é a sociedade brasileira, que elevou a
vigarice e o crime a símbolos convencionais da normalidade e já se deslumbra até
o ponto do desvanecimento e do orgasmo quando alguém simplesmente se abstém de
praticar a esperada sacanagem.
Nessa escala diminuída, não é de
espantar que a própria extensão dos delitos cometidos e punidos tenha sido
reduzida à sua medida mínima, como se fossem meros pecados individuais e não a
expressão direta, racional e inevitável da estratégia política global que
dirige o curso dos acontecimentos neste País desde há uma década.
Nenhum dos réus do processo agiu por
conta própria, nem no seu interesse pessoal exclusivo. Todos tinham a
consciência clara – e por isso mesmo, a seus próprios olhos, totalmente limpa –
de trabalhar para a glória e o poder do seu partido, para a consolidação da
hegemonia esquerdista, que se colocava acima das leis não por um desvio
acidental, mas com o propósito deliberado de destruir o sistema vigente e
legitimar, pelo hábito repetido, o império soberano de uma nova autoridade: o
"poder onipresente e invisível" de que falava Antonio Gramsci.
Esquecer a dimensão estratégica desses
crimes, usando as culpas individuais como cortina de fumaça para encobrir o
plano global que os gerou, não é de maneira alguma fazer justiça: é inocentar o
grande culpado, punindo em vez dele os seus colaboradores.
O fato é que nem os juízes, nem os
analistas de mídia, nem os formadores de opinião em geral conhecem, seja os
planos estratégicos da esquerda brasileira como um todo, seja, mais ainda, a
tradição marxista que os inspira e determina. Todos julgam, assim, desde uma
visão minimalista onde os detalhes aparecem soltos e o projeto maior permanece
incólume por trás do sacrifício de seus estafetas e office-boys.
Quem quer que tenha estudado um pouco
de estratégia comunista – o que não é o caso de nenhum desses ilustres
opinadores – sabe que a conduta do partido revolucionário se orienta com o
propósito de usar temporariamente o direito burguês como instrumento não só
para impor em nome dele um direito novo e antagônico, mas de apressar a
desaparição de todo o direito, substituindo-o pelos decretos onipotentes da
elite iluminada que comanda o processo.
Onde quer que um partido imbuído da
ambição revolucionária de mudar a sociedade de alto a baixo ascenda ao poder,
usando para isso os pretextos mais respeitáveis da moralidade convencional –
como o fez o PT ao longo da sua fulgurante carreira de denunciador da corrupção
alheia –, a imoralidade e o crime se imporão logo em seguida, não como desvios
e aberrações, mas como instrumentos preferenciais para demolir o senso
estabelecido da moral e da justiça e, na subsequente confusão geral das
consciências, impor um novo padrão de julgamento, onde a vontade revolucionária
é o critério supremo e único do bem e da verdade.
Tudo isso está ocorrendo bem diante dos
olhos sonsos e cegos de uma opinião pública que não apenas se contenta, mas
entra em êxtase quando o partido criminoso entrega à justiça seus agentes
menores para preservar-se politicamente, limpando-se na sua própria sujeira,
como sempre.
Publicado no Diário do Comércio.
Olavo de Carvalho